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quinta-feira, 2 de julho de 2009

O fim da viagem

Sob os meus olhos, com os dele, numa viagem que nunca existiu, mas que existe


por Fernando Gil Paiva

Depois do gigantesco choque com o tamanho da favela e o número de pessoas vivendo de modo subumano. Assim, o viajante do passado, em tempos presentes, segue em busca das velhas repostas, sem, necessariamente, responder às novas perguntas.
3º Dia
Apertei novamente o botão do gravador, voltei a fita e comecei a ouvir novamente, pela sétima vez. Suas palavras soaram como um sujeito sem muita resistência, alguém cuja salvação própria tardaria a vir.
- Amrutbhai, o que você estava fazendo em Varanasi? Foi por causa do Ganga?
- Dependendo do modo como você ver, pode até ser que sim. Já fazia uma semana que eu estava lá, mas quando cheguei não estava sozinho. Minha família havia conseguido um pequeno espaço num velho caminhão, ele nos levaria escondidos na carroceria.
- E eles ficaram lá?
- Ficaram. Você deve saber muito bem das coisas que acontecem e imaginar o modo como acontecem. Quanto mais baixa a casta, mais você é deixado de lado, tanto por aqueles que também são de outras castas inferiores. Há sempre alguém querendo evitar que nos aproximemos de um determinado lugar ou que façamos algo... Tudo que meus pais e meus dois irmãos queriam era ir à Varanasi banhar-se nas águas sagradas do rio, tentar trazer um pouco mais de felicidade para nossas vidas sofridas.
- Amrutbhai... Eu sinto...
- Não sinta. Se isso está nos acontecendo é fato que seja a melhor coisa. Não posso tentar mudar o modo como as pessoas se tratam e se relacionam. Você é o único homem não membro da minha família que converso em toda minha vida. Seu aceno de aceitação serviu para me mostrar que eu devo continuar, mesmo que com isso eu tenha que passar por mais alguns sofrimentos.
- Tudo dará certo, meu amigo. Não lembra da primeira coisa boa que já nos ocorreu no dia de hoje? Você agora terá um trabalho, tem um lugar para dormir.
- Isso é verdade. Em dois dias poderei começar. Produzirei o máximo que puder, aprenderei quanto mais me for permitido e tentarei mudar alguma coisa... É o mínimo que posso fazer. Como você disse, também tenho onde dormir, já que nos intervalos dos turnos poderei dormir lá mesmo. A fábrica de roupas não pára nunca.
A conversa cessou. Quase dois minutos depois é que ele voltou a dizer algo.
- Você já ouviu falar que os intocáveis são cruelmente maltratados?
- Já. Mas você não precisa falar disso se não quiser.
- Estávamos todos dormindo na escadaria que dá para o rio. Alguém, com uma faca, se achou no direito de fazer o que fez. Eu corri, de tão covarde que sou. Depois, como não tinha dinheiro para o crematório e também nem podia mais ficar na cidade, joguei-os no rio, com as mesmas faces de quando dormiam. Já está tarde, você já pode ir deitar se quiser.
- Você tem certeza de que não quer entrar?
- Sim.
- Ao aceitar o discurso que as castas impõem e não reagir frente ao seu poder, nada disso irá mudar. O poder é constituído por relações de forças, e onde há força há resistência por parte dos sujeitados, no seu caso, aos dogmas religiosos. Não pense que...
- Todo esse mundo aí fora também nos consome. Devo também resistir a ele? Acho que agora vou dormir.
E essa foi a última palavra que disse antes do final da gravação. Ele ajeitou-se com o mesmo pedaço de papelão mole e fechou os olhos. Aí sim, quando entrei, fiquei com um sentimento estranho dentro de mim. Uma coisa que, ao meu saber, era incompreendido.
Saber, saber... Quais as técnicas[1] que existem para nós mesmos?
Logo depois, a marcante imagem do dia: duas mulheres e sua refeição comprada – os restos de galinha de um restaurante. Fechei os olhos, dormi, mas sem esquecê-las.
4º Dia
Minhas palavras para este quarto dia são poucas. Objetivamente, por causa de uma dupla perda; subjetivamente, esse mesmo sentimento é mais abrangente. É estranho que nessa ocasião tenha me lembrado da máquina de Bentham[2]... Mas também fica evidente que essas ações que se desencadearam têm uma história muito remota e um poder muito grande sobre as pessoas. Mas nada disso também pode ser justificado pelos preceitos religiosos, já que aquele que mata é incapaz de compreender qual o sentido da vida.
Sendo assim, digo que nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância[3]. É possível que eu me permita considerar o ato de hoje como um espetáculo de barbárie, justo para fazer com que imagens fiquem mais acessíveis.
Retomando:
1- Acordei cedo, tomei o café e comprei pães e cereais na própria hospedaria, para poder dar para Amrutbhai;
2- Percebi um último homem que ainda estava de pé, na entrada do lugar;
3- Segui para o hospital de Dharavi, que fica na rua 60 Pés;
4- Tive uma lembrança, em seguida uma visão: “É provavelmente a mais bem estruturada favela de Mumbai” – Essa era a cidade de Amrutbhai. Estruturada para atender sua população. Aqui tem escolas, hospital, distrito de polícia e tudo que, para sua vida, era necessário. (A sua visão);
5- A imagem que não vai sair. Seu corpo quase todo queimado, não mais o medo no olhar e uma vida encerrada por um ato de linchamento contra um jovem que só quis ajudar;
6- A carta que trouxe do hospital e que estava consigo... Intacta.

Desculpe, meu amigo, por não termos tido nossa última palavra. Você contribuiu para que meus filhos conseguissem um trabalho e logo estarão em uma faculdade, algo que tanto gostaria. Minha vida está por findar. São duas as palavras, na verdade... Muito obrigado.
Seu amigo, Atul.
1978.
7- Algo que eu nunca saberei. A procedência desta carta que me faz desabar.
Em alguns minutos, sairei caminhando pela mesma calçada que ele dormia. Ficarei esperando o primeiro ônibus de volta e olharei uma última vez para os últimos lugares que ele olhou.

Epílogo

Todos em algum momento são um pouco Índia no modo de viver, as pessoas têm uma vida hierarquizada, sentimentos que geram atos violentos, culturas inabaláveis...
Elementos do real podem ser aplicados para formar uma situação, um evento irreal, a hiper-realidade, mas mesmo estando nesse outro plano, algumas coisas ainda escapam de nossas mãos. Com isso, finalizo essa pequena grande viagem. E, no fim, as palavras vieram até mim de modo não-imaginado e não foram minhas, mas sim do meu receptor objetivado.

Volto ao meu tempo, acabou-se o simulacro.

Diário de viagem de: Michel Foucault[4]

[1]Para este exemplo, pode-se observar a quarta classificação que aparece no texto “As técnicas de si” e que estão relacionadas à construção do saber: “as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser”.

[2]O dispositivo panóptico, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir, constitui uma ‘máquina’, idealizada por Bentham no século XVIII, cuja arquitetura é formada por uma torre central e uma construção circular periférica. Nesta se encontram indivíduos a serem vigiados – prisioneiros, loucos, escolares, trabalhadores, isolados em células, formando “uma coleção de individualidades separadas” – enquanto naquela se encontram os vigias. As salas da construção periférica são determinadas por janelas externas (por onde entra a luz) e por janelas internas (frente à torre central). E é justamente essa a eficiência do dispositivo panóptico: “ver sem ser visto”; à torre é possível ver tudo o que acontece no prédio externo, ao passo que este nem sabe se é, ou não, vigiado. “A visibilidade é uma armadilha”.
As conseqüências são imediatas: separados pelas paredes – cada um em sua célula – os indivíduos são analisados individualmente. Já a possibilidade de serem vigiados a todo instante incita um sentimento de auto-regulamentação. Ou seja, o indivíduo constrói (ou assimila) uma série de condutas que permanecem dentro de um limite aceitável – o bom senso não é transgredido. Nas palavras do autor, o dispositivo induz “um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”, com um objetivo inicial, base representativa do panoptismo: disciplinar.

[3] Frase de Michel Foucault, em Vigiar e Punir.

[4] Em junho de 1984, em função de complicações provocadas pela AIDS, Michel Foucault tem septicemia, o que o leva à morte por supuração cerebral.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Diário de uma viagem hiper-real (II)

A Índia e Foucault


por Fernando Gil Paiva

Na sequência, continua a história do Navegante pela "Índia dos seus olhos sob os meus". Ele chega à Mumbai e lá começa a descobrir as relações existentes entre as pessoas. Ele também chega à Dharavi, a favela de mais de um milhão de pessoas. A história continua em seu segundo dia:

2º Dia

Como confirmadas as minhas expectativas, desci em Mumbai com olhos evidentes de espanto – tanto para o lado bom como mal. A cidade muito se desenvolveu na parte rica e as favelas se agigantaram loucamente. E, com isso, o abismo entre esses dois mundos só fez aumentar as favelas que, no caso, se distanciam da vida altamente gerada pelo capital e por ele controlada.
Mas o que ocorre aqui é que o capital não é o único obstáculo, bem como o rígido sistema de castas, que mesmo com “os olhos do governo tapados” com proibições, continua a vigorar para mais de 80% da população. Trata-se dessa rígida hierarquização com base nos preceitos hinduístas, que nasceu a partir de uma lenda, na qual os principais grupos emergiram de um ser primordial[1].
Estava na metade do dia e ainda não havia parado de caminhar desde que chegara. Deixei o mesmo caderno sob o braço, arrumei a mochila nas costas e sentei em uma cadeira numa loja de móveis. Foi quando percebi que poderia estar sendo seguido. Ali estava um homem simples, um jovem, que percebi que poderia tê-lo visto ainda na cidade anterior. Seu olhar punitivo entregava-se diante da minha dúvida em querer saber o porquê do ato.
Então, acenei com a cabeça dando-lhe o consentimento para a aproximação e logo depois ele estava à minha frente, com o braço esticado segurando uma fotografia. A mesma que estivera dentro do meu caderno. Entregou-me e já ia saindo quando acenei para que não partisse. Estando eu sozinho e diante de uma oportunidade de ter alguém que conhecesse o lugar para me ajudar a chegar ao meu contato, descobri que era possível nos comunicarmos com o inglês que sabíamos.
Amrutbhai contou-me que já não deveria haver tal endereço que eu procurava. Nas últimas décadas, milhares de famílias haviam se aglomerado neste terreno que um dia fora um pântano e agora, Dharavi, a grande favela que muito havia mudado e que abriga mais de um milhão de pessoas, todas vivendo amontoadas neste cerco de 2,5 quilômetros quadrados numa região altamente valorizada, pois, por incrível que, até aos olhos, pareça, não fica na periferia e sim quase no centro da capital financeira da Índia. É provavelmente a mais bem estruturada favela de Mumbai, ele me disse, mas talvez eu não diga o mesmo, pois a imagem que ainda está fixa na minha memória é a do caos, da sujeira, das casas construídas irregularmente e das vielas encharcadas por um rastro líquido de esgoto e chuva que caíra desde o entardecer e prossegue...
Depois que andei umas duas horas, vim para esta hospedaria que fica a apenas alguns minutos de lá. Amrutbhai negou quando lhe ofereci uma das camas do meu quarto. Ele está agora lá fora, de cócoras, encostado na parede protegendo-se inutilmente da água com um frouxo pedaço de papelão. Somos todos constituídos de saberes, mas apesar de possuirmos um saber comum com outro indivíduo, nunca teremos uma mesma visão.

O saber que lhe foi passado diz que seu lugar não é aqui dentro, que deve estar onde foi predestinado para tanto. E tento não pensar, com um sentimento de culpa, o fato de eu estar aqui e ele lá, mas também sei que nada o faria mudar, pois casta não se pode esconder.

Tanto é verdade que quem nasce como dhobi, por exemplo, se ocupará pelo resto de sua vida manuseando peças com sangue e dejetos humanos; ou aqueles destinados a passar os dias limpando fossas alheias sem qualquer proteção; ou os cremadores de corpos; ou os curtidores de couro e não me esquecendo dos caçadores de ratos. Sinto-me bloqueado para continuar essa angustiante enumeração.

Olho para um lado e vejo a noite tão clara como o dia, com milhares de luzes amareladas e vermelhas que vêm dos grandes prédios, das largas avenidas, dos luminosos, os carros e a vida contínua; e quando volto para Dharavi, lá está ela, silenciosa e escura, a cidade das sombras que dorme e tenta sobreviver em plena agitação do capitalismo. Vejo num campo imaginário, mas real para meus olhares, uma porção de setas que afluem para todos os lados indicando, cada uma delas, onde o maior poder se instaura com relação a outro. Por último, vejo uma seta diferente, acredito ser ela a seta do sagrado, da ordem religiosa desse povo, exercendo sua força e impondo condutas inalteráveis... É tanta força, que o discurso parece imutável.

Planos para o dia de amanhã: muitos. Espero saber um pouco mais de Amrutbhai, conhecer mais lugares e ver mais rostos diferentes em Dharavi. Quero ajudar esse jovem tão cheio de mistério e medo e também encontrar meu amigo do passado...


[1] “Da boca vêm os brâmanes – sacerdotes e mestres. Dos braços, os xátrias – governantes e soldados. Das coxas, os vaixás – mercadores e negociantes – e, dos pés, os sudras – trabalhadores braçais. Cada grupo, por sua vez, abrange centenas de castas e subcastas hereditárias, cada qual com hierarquia própria. Um quinto grupo consiste nas pessoas que são achuta, ou intocáveis. Não vieram do ser primordial. Eles são os excluídos – pessoas demasiado impuras para classificar-se como seres dignos” (O’NEIL, Tom. “Intocáveis”. National Geographic, Junho 2003.)