quarta-feira, 1 de julho de 2009

Diário de uma viagem hiper-real (II)

A Índia e Foucault


por Fernando Gil Paiva

Na sequência, continua a história do Navegante pela "Índia dos seus olhos sob os meus". Ele chega à Mumbai e lá começa a descobrir as relações existentes entre as pessoas. Ele também chega à Dharavi, a favela de mais de um milhão de pessoas. A história continua em seu segundo dia:

2º Dia

Como confirmadas as minhas expectativas, desci em Mumbai com olhos evidentes de espanto – tanto para o lado bom como mal. A cidade muito se desenvolveu na parte rica e as favelas se agigantaram loucamente. E, com isso, o abismo entre esses dois mundos só fez aumentar as favelas que, no caso, se distanciam da vida altamente gerada pelo capital e por ele controlada.
Mas o que ocorre aqui é que o capital não é o único obstáculo, bem como o rígido sistema de castas, que mesmo com “os olhos do governo tapados” com proibições, continua a vigorar para mais de 80% da população. Trata-se dessa rígida hierarquização com base nos preceitos hinduístas, que nasceu a partir de uma lenda, na qual os principais grupos emergiram de um ser primordial[1].
Estava na metade do dia e ainda não havia parado de caminhar desde que chegara. Deixei o mesmo caderno sob o braço, arrumei a mochila nas costas e sentei em uma cadeira numa loja de móveis. Foi quando percebi que poderia estar sendo seguido. Ali estava um homem simples, um jovem, que percebi que poderia tê-lo visto ainda na cidade anterior. Seu olhar punitivo entregava-se diante da minha dúvida em querer saber o porquê do ato.
Então, acenei com a cabeça dando-lhe o consentimento para a aproximação e logo depois ele estava à minha frente, com o braço esticado segurando uma fotografia. A mesma que estivera dentro do meu caderno. Entregou-me e já ia saindo quando acenei para que não partisse. Estando eu sozinho e diante de uma oportunidade de ter alguém que conhecesse o lugar para me ajudar a chegar ao meu contato, descobri que era possível nos comunicarmos com o inglês que sabíamos.
Amrutbhai contou-me que já não deveria haver tal endereço que eu procurava. Nas últimas décadas, milhares de famílias haviam se aglomerado neste terreno que um dia fora um pântano e agora, Dharavi, a grande favela que muito havia mudado e que abriga mais de um milhão de pessoas, todas vivendo amontoadas neste cerco de 2,5 quilômetros quadrados numa região altamente valorizada, pois, por incrível que, até aos olhos, pareça, não fica na periferia e sim quase no centro da capital financeira da Índia. É provavelmente a mais bem estruturada favela de Mumbai, ele me disse, mas talvez eu não diga o mesmo, pois a imagem que ainda está fixa na minha memória é a do caos, da sujeira, das casas construídas irregularmente e das vielas encharcadas por um rastro líquido de esgoto e chuva que caíra desde o entardecer e prossegue...
Depois que andei umas duas horas, vim para esta hospedaria que fica a apenas alguns minutos de lá. Amrutbhai negou quando lhe ofereci uma das camas do meu quarto. Ele está agora lá fora, de cócoras, encostado na parede protegendo-se inutilmente da água com um frouxo pedaço de papelão. Somos todos constituídos de saberes, mas apesar de possuirmos um saber comum com outro indivíduo, nunca teremos uma mesma visão.

O saber que lhe foi passado diz que seu lugar não é aqui dentro, que deve estar onde foi predestinado para tanto. E tento não pensar, com um sentimento de culpa, o fato de eu estar aqui e ele lá, mas também sei que nada o faria mudar, pois casta não se pode esconder.

Tanto é verdade que quem nasce como dhobi, por exemplo, se ocupará pelo resto de sua vida manuseando peças com sangue e dejetos humanos; ou aqueles destinados a passar os dias limpando fossas alheias sem qualquer proteção; ou os cremadores de corpos; ou os curtidores de couro e não me esquecendo dos caçadores de ratos. Sinto-me bloqueado para continuar essa angustiante enumeração.

Olho para um lado e vejo a noite tão clara como o dia, com milhares de luzes amareladas e vermelhas que vêm dos grandes prédios, das largas avenidas, dos luminosos, os carros e a vida contínua; e quando volto para Dharavi, lá está ela, silenciosa e escura, a cidade das sombras que dorme e tenta sobreviver em plena agitação do capitalismo. Vejo num campo imaginário, mas real para meus olhares, uma porção de setas que afluem para todos os lados indicando, cada uma delas, onde o maior poder se instaura com relação a outro. Por último, vejo uma seta diferente, acredito ser ela a seta do sagrado, da ordem religiosa desse povo, exercendo sua força e impondo condutas inalteráveis... É tanta força, que o discurso parece imutável.

Planos para o dia de amanhã: muitos. Espero saber um pouco mais de Amrutbhai, conhecer mais lugares e ver mais rostos diferentes em Dharavi. Quero ajudar esse jovem tão cheio de mistério e medo e também encontrar meu amigo do passado...


[1] “Da boca vêm os brâmanes – sacerdotes e mestres. Dos braços, os xátrias – governantes e soldados. Das coxas, os vaixás – mercadores e negociantes – e, dos pés, os sudras – trabalhadores braçais. Cada grupo, por sua vez, abrange centenas de castas e subcastas hereditárias, cada qual com hierarquia própria. Um quinto grupo consiste nas pessoas que são achuta, ou intocáveis. Não vieram do ser primordial. Eles são os excluídos – pessoas demasiado impuras para classificar-se como seres dignos” (O’NEIL, Tom. “Intocáveis”. National Geographic, Junho 2003.)

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