por Fernando Gil Paiva

No primeiro dia, num desses que você está tão atrasado que só corre, corre, o homem chega para conversar. Mas existe algo em alguns indivíduos que diz que você deve ouvir aquela história que a pessoa está contando. Muitas vezes pode não ser verdade, mas daquela vez parecia. O homem que, visivelmente, não era da cidade, mostrou seus documentos, a carteira de trabalho e logo contou que viera do Espírito Santo para trabalhar com a proposta de uma pessoa, um intermediário que nunca apareceu. Rendido, dei-lhe a moeda do agradecimento que viria. Depois ele seguiu, e deve ter mostrado seus documentos mais algumas vezes. O que peco a partir daqui é não me lembrar de seu nome, mesmo tendo sido apresentado várias vezes a ele. O dia seguiu e terminou. Era uma quinta feira.
O relógio da madrugada seguinte arrebentou acelerado e por alguns segundos não o encontrei. Era bem antes das seis da manhã, acho que umas cinco e vinte. Acordar cedo foi uma consequência do dia anterior, o dia que milhares de pessoas ficaram horas intermináveis numa fila para ter o direito ao passe livre de estudante. Eu fiquei 5 horas. Sai de lá sem ser atendido e queimado de sol, o que no meu caso é bem relevante. Quando saí de casa, o dia ainda estava escuro e as ruas completamente vazias. Já para adiantar, eu voltei da fila para casa, porque às seis da manhã estava tão grande como no dia anterior.
O que aconteceu foi que antes de ver o tamanho da fila, antes de imaginar quão grande estaria, antes de descer do ônibus, ali – no ponto de ônibus! – novamente se apresentou o desconhecido. Não era mais desconhecido para mim, mas ele não se lembrou da minha cara, então ficamos quites por eu não lembrar o nome dele e nem ele lembrar que eu o havia ajudado.
Continuando a história, o capixaba me olhou nos olhos e folheou mais algumas páginas de sua carteira de trabalho e disse que também nenhum outro empregador o aceitara até então e que ele precisava juntar dinheiro para voltar. Era um pouco antes das seis e ele estava à procura do fim de suas frustrações. No dia dois, não tive como ajudar, mas ouvi sua história como se fosse a primeira vez, ignorando o coelho que rasgava meu bolso com o relógio a apitar.
Dias e semanas de correria para cá, dias e semanas de correria para lá. E n’outra dessas, para quebrar mais engrenagens, aparece o errante, não mais um errante. Acho que foi um domingo, num lugar não tão perto da minha casa. Ele estava vindo na calçada. Na mão direita não tinha mais os documentos; na esquerda, caía a areia que tinha na mão e que antes estava numa ampulheta que se partiu. O coelho e o relógio tinham nomes diferentes agora. Era uma questão vital. Pela terceira vez ouvi a história do homem de não mais que trinta anos. Sua identidade se imprimia no olhar e nas mãos que tentavam expressar um desespero constante. Disse, pelo “infelizmente”, que não tinha nada comigo e ele partiu.
Depois desse dia, nunca mais vi o Espírito Santo, se assim cabe chamá-lo. E isso já faz umas quatro semanas ou mais. Antes eu pensei em dizer que é estranho como algumas pessoas ficam remoendo essas memórias, mas agora acho que estranho não é a palavra certa – mas, sim, natural. É, no mínimo, natural que, diante de tantos acontecimentos repetidos, alguém tenha esse tipo de preocupação, mesmo que eu saiba que seja uma coisa sem resposta aparente. Na verdade, a melhor resposta será não vê-lo mais, assim me consolo com seu regresso e elimino a imagem do pêndulo de um relógio que vai, mas sempre volta e fica no mesmo lugar. Partiu, voou e evitou que, de tanto queimar à procura, virasse a cinza das horas.