terça-feira, 5 de maio de 2009

A cinza das horas contra o Espírito Santo!

por Fernando Gil Paiva


Sabe o coelho da Alice no País das Maravilhas? Aquele que corre com o relógio loucamente contra o tempo? Então, quem não diz que a maioria das pessoas parece ter um coelho desses dentro do bolso ou na própria cabeça? Correria para cá, correria para lá. E numa dessas, para quebrar algumas engrenagens, aparece um errante sem coelho, nem relógio. Talvez tivesse tido um no passado, talvez não.

No primeiro dia, num desses que você está tão atrasado que só corre, corre, o homem chega para conversar. Mas existe algo em alguns indivíduos que diz que você deve ouvir aquela história que a pessoa está contando. Muitas vezes pode não ser verdade, mas daquela vez parecia. O homem que, visivelmente, não era da cidade, mostrou seus documentos, a carteira de trabalho e logo contou que viera do Espírito Santo para trabalhar com a proposta de uma pessoa, um intermediário que nunca apareceu. Rendido, dei-lhe a moeda do agradecimento que viria. Depois ele seguiu, e deve ter mostrado seus documentos mais algumas vezes. O que peco a partir daqui é não me lembrar de seu nome, mesmo tendo sido apresentado várias vezes a ele. O dia seguiu e terminou. Era uma quinta feira.

O relógio da madrugada seguinte arrebentou acelerado e por alguns segundos não o encontrei. Era bem antes das seis da manhã, acho que umas cinco e vinte. Acordar cedo foi uma consequência do dia anterior, o dia que milhares de pessoas ficaram horas intermináveis numa fila para ter o direito ao passe livre de estudante. Eu fiquei 5 horas. Sai de lá sem ser atendido e queimado de sol, o que no meu caso é bem relevante. Quando saí de casa, o dia ainda estava escuro e as ruas completamente vazias. Já para adiantar, eu voltei da fila para casa, porque às seis da manhã estava tão grande como no dia anterior.

O que aconteceu foi que antes de ver o tamanho da fila, antes de imaginar quão grande estaria, antes de descer do ônibus, ali – no ponto de ônibus! – novamente se apresentou o desconhecido. Não era mais desconhecido para mim, mas ele não se lembrou da minha cara, então ficamos quites por eu não lembrar o nome dele e nem ele lembrar que eu o havia ajudado.

Continuando a história, o capixaba me olhou nos olhos e folheou mais algumas páginas de sua carteira de trabalho e disse que também nenhum outro empregador o aceitara até então e que ele precisava juntar dinheiro para voltar. Era um pouco antes das seis e ele estava à procura do fim de suas frustrações. No dia dois, não tive como ajudar, mas ouvi sua história como se fosse a primeira vez, ignorando o coelho que rasgava meu bolso com o relógio a apitar.

Dias e semanas de correria para cá, dias e semanas de correria para lá. E n’outra dessas, para quebrar mais engrenagens, aparece o errante, não mais um errante. Acho que foi um domingo, num lugar não tão perto da minha casa. Ele estava vindo na calçada. Na mão direita não tinha mais os documentos; na esquerda, caía a areia que tinha na mão e que antes estava numa ampulheta que se partiu. O coelho e o relógio tinham nomes diferentes agora. Era uma questão vital. Pela terceira vez ouvi a história do homem de não mais que trinta anos. Sua identidade se imprimia no olhar e nas mãos que tentavam expressar um desespero constante. Disse, pelo “infelizmente”, que não tinha nada comigo e ele partiu.

Depois desse dia, nunca mais vi o Espírito Santo, se assim cabe chamá-lo. E isso já faz umas quatro semanas ou mais. Antes eu pensei em dizer que é estranho como algumas pessoas ficam remoendo essas memórias, mas agora acho que estranho não é a palavra certa – mas, sim, natural. É, no mínimo, natural que, diante de tantos acontecimentos repetidos, alguém tenha esse tipo de preocupação, mesmo que eu saiba que seja uma coisa sem resposta aparente. Na verdade, a melhor resposta será não vê-lo mais, assim me consolo com seu regresso e elimino a imagem do pêndulo de um relógio que vai, mas sempre volta e fica no mesmo lugar. Partiu, voou e evitou que, de tanto queimar à procura, virasse a cinza das horas.

2 comentários:

  1. Que hitória comovente! Coincidências? Destino? Difícil não emocionar...bjs te amo

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  2. A Dafne é o coelho materializado. Alguém já disse isso e concordei na mesma hora.

    Ah, gostei da influência lusitana na linguagem. Sem falar na história, perfeita!

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