sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A arte dos princípios

     Quem tem o hábito de escrever, criar histórias, dar vida a personagens, tirar a vida dos mesmo, sabe quão difícil é a tarefa do princípio. O quão significante tem de ser um bom começo, para que, assim, aqueles que sempre pensamos quando escrevemos, terão o prazer dedicado ao ato da leitura. Um bom começo é a ferramenta significativa que engrandece um livro e os olhares de um ávido leitor. Por que não se trata apenas de fechar com chave de ouro (tive que recorrer à esse clichê para a clarificação da situação) mas fazer-se em ouro toda a história narrada. É por isso, que refletindo sobre inícios memoráveis da literatura nacional e mundial, separei alguns livros de temáticas díspares que gostei e me identifiquei e resolvi rever seus princípios. 


     Truman Capote - A Sangue Frio

     "A cidade de Holcomb fica nas planícies do oeste do Kansas, lá onde cresce o trigo, uma área isolada que mesmo os demais habitantes do Kansas consideram distante. A uns 110 quilômetros da divisa entre o Kansas e o Colorado, a paisagem, com seu céu muito azul e límpido ar do deserto, tem uma aparência que está mais para a do Velho Oeste do que para a do Meio Oeste. O sotaque local traz as farpas da pronúncia cortante da pradaria, a nasalidade dos caubóis, e os homens, muitos deles, usam calças apertadas, chapéus Stetson e botas de salto alto com bicos pontudos. A terra é plana, e os panoramas são incrivelmente extensos; cavalos, rebanhos de gado e um aglomerado branco de silos de cereais que se elevam com a graça de templos gregos são visíveis muito tempo antes que o viajante os alcance".


      Clarice Lispector - Um sopro de vida


     "Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto.
     Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos, porque neles vivemos. 
    De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. Decerto tudo deve estar sendo o que é". 

      

     J. K. Rowling - Harry Potter e a Pedra Filosofal

    "O Sr. e a Sra. Dursley, da rua dos Alfeneiros, nº4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas pessoas no mundo que se esperaria que se metessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de bobagem. 
      O Sr. Dursley era diretor de uma firma chamada Grunnings, que fazia perfurações. Era um homem alto e corpulento quase sem pescoço, embora tivesse enormes bigodes. A Sra. Dursley era magra e loura e tinha um pescoço quase duas vezes mais comprido que o normal, o que era muito útil porque ela passava grande parte do tempo espichando-o por cima da cerca do jardim para espiar os vizinhos. Os Dursley tinham um filhinho chamado Dudley, o Duda, e em sua opinião não havia garoto melhor em nenhum lugar do mundo". 

       Ian McEwan - Reparação

      "A peça - para a qual Briony havia desenhado os cartazes, os programas e os ingressos, construído a bilheteria, a partir de um biombo dobrável deitado de lado, e forrado com papel crepom vermelho a caixa para guardar dinheiro - fora escrita por ela num furor criativo que duraria dois dias e que a levara a perder um café da manhã e um almoço. Terminados todos os preparativos, só lhe restava contemplar o texto pronto e aguardar a vinda dos primos do Norte longínquo. Só haveria tempo para um dia de ensaios antes de seu irmão chegar. A peça, emocionante em alguns trechos, de uma tristeza desesperada em outros, era uma história do coração, cuja mensagem, expressa num prólogo rimado, era a de que todo o amor que não fosse fundado no bom senso estava fadado ao fracasso". 
     
      Quando revivemos tais momentos que já foram lidos, percebemos que a arte de começar está longe de nos dizer o tamanho real de um texto, está mais longe ainda de nos mostrar o destino que terá cada personagem. Alguns deles ainda nem apresentados nas primeiras linhas; outros, pincelados com a sutileza das palavras coerentes. Grandes começos, entretanto, não são certezas de um grand finale, como se percebe em muitas obras em que o autor parece afoito por concluir tal ou qual acontecimento e fazer uma abreviação de certos momentos que antes pareciam tão bem digeridos em palavras. Resta ao escritor, o termômetro, praticamente nato, para colocar e construir em palavras aquilo que habita apenas sua imaginação. Outros livros tem inícios, com certeza, muito mais potentes que os apresentados e foram imortalizados por isso, mas também é certo e louvável que hoje podemos todos apreciar o modo particular como cada autor, em seu gênero e mergulhado em sua subjetividade, lida com sua arquitetura das palavras, segue seu devir colocando apenas aquilo que lhe é posto e ao qual está, muito provavelmente, condenado até a morte.  


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