quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Encontramos identidade num lar desabitado



Quem era aquele que queimava suas horas na cadeira? Que antes do cair do sol, das venturas da noite e do vento frio da madrugada inundava-se em páginas e páginas de poesia à prosa?

Em cada página um balanço da cadeira atualizava um balanço da história.
Rondava pelos mesmos lugares, como se até em sua casa, a rotina dos caminhos estivesse certa até a hora da morte.

Passava pelo corredor das fotografias e de hora em hora ia ao banheiro dos fundos, onde se descontrolava em suas incontinências, e que ora vinham com escassez, ora cheias de vontade.

Assim, aquela casa foi se tornando o que aquele homem era.
Nossa casa é o espelho do que somos. Aquele que adentra um lar desconhecido tem o prazer ou desprazer de invadir intimidades, desvelar identidades e corromper o conhecido no desconhecido. É capaz de ver a capa que cobria o chão, ouve os talheres caindo das mãos, a chama da vela se extinguindo...

Um leitor de vida, um leitor do acaso. Que partiu. Partiu-se em dois ou mais fragmentos, em chamas queimou, nas cinzas das horas. O vazio. O definitivo vazio. A embriaguez da solidão e a casa que rangia as madeiras, que lamentava a falta dos passos sobre si, que vomitava este sentimento tão pouco traduzível ou substituível que é a saudade.

Abrimos a porta [dias depois], o pó subiu dos móveis e voltou a repousar pouco tempo depois. Tínhamos a ordem de varrer tudo aquilo, no sentido de aniquilar móveis velhos, desfazer-se de livros, tirar apenas proveito daquilo que ainda era usável, o que deveria ser pouco.

Mas tão enganados estávamos que, chegando à casa do velho, foi impossível movermos algo. Encontramos identidade num lar desabitado. E foi assim, lento passo a passo na madeira, que o homem se refez, em cada gesto, em cada fragmento antes espalhado e ali estava ele, como se nunca tivesse dali partido.

A impressão era de que a cadeira pendia a tal ângulo prestes a balançar. Os livros rogavam por ter suas páginas viradas. Os personagens ameaçavam suicídios ou assassínios e tudo pedia que o homem não partisse. Que dali não se desfizesse alguém tão inerente.

Foi então, que distante deste ponto, uma pedra que rolava para o mar caiu, e o continente ficou menor sem ela. E de que adiantaria então, pensamos, tirar todas aquelas coisas daquela grande casa se ao final das contas teríamos um vazio maior ainda numa casa que não caberia nem os pés! Que não adentraria nem um olhar forasteiro!

Com isso, cada coisa tinha, sim, que permanecer em seu lugar. Ainda que seu antigo habitante tivesse partido, ali ainda era seu lar, e se seu corpo já não testemunhava sua existência, tudo aquilo testemunhava sua identidade.       

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