quarta-feira, 10 de junho de 2009

Redação Jornalística - Reportagem

Condutas de Risco

por Fernando Gil Paiva


Lívia olhou para o ponto de ônibus e sentiu um alívio. Se não estivesse com o carro do pai seria ela que estaria ali meia hora antes. Ela é patologista clínica na Unic e mora na rua Barão de Melgaço. Teria outra opção: ir com a moto do namorado. Mas estes privilégios não são de todo dia. Na maioria das vezes, ela vai mesmo é de ônibus. Em todas essas ocasiões, Lívia vive o desconforto do trânsito cuiabano.

Mesmo quando está de carro, um Pálio que só usa quando os pais chegam de Nova Campo Verde, no norte de Mato Grosso, o ônibus continua sendo o grande vilão de sua vida. No ano passado, um deles quase destruiu seu carro, que estava parado. O acidente, além dos danos materiais, deixou um trauma que acompanha Lívia não só quando está dirigindo o carro, mas também quando usa a moto do namorado para ir ao trabalho ou para estudar inglês.

Nos dias em que está motorizada, além do medo da imprudência dos motoristas de ônibus, ela enfrenta uma corrida intensa e desorganizada de veículos. É por isso que quando tem chance, vai pelos caminhos com menos movimento, por dentro dos bairros, fugindo dos sinaleiros. Por não ter que ir antes ao ponto para pegar um ônibus razoavelmente vazio, Lívia ganha, com isso, meia hora e mais uns minutos pela velocidade do carro e pela rota que percorre quando vai de carro ou moto.

Pode ser de manhã quando vai ao trabalho, no fim da tarde quando vai às aulas de inglês ou na volta para casa, as ruas parecem sempre pequenas para a quantidade de veículos que se amontoa em cada brecha. Quando Lívia pensa sobre a situação do trânsito em Cuiabá, ela é mais uma que passa a compor a estatística dos descontentes, que compartilham os mesmos pensamentos, seja o veículo carro, moto ou ônibus.

Cuiabá cresceu, o número de veículos cresceu e as vias continuaram praticamente as mesmas. O fluxo e o caos mostram problemas estruturais. Lívia vai além e toca na questão da educação. Para essa múltipla usuária do trânsito, imprudência de motorista é igual à falta de educação. Os medos de Lívia são resultados dos riscos que passa diariamente. Tem o motorista desatento, o pé pesado no acelerador, o motoqueiro ousado, o condutor de ônibus que compete com outros veículos numa situação que parece uma verdadeira corrida. Todos estes, personagens de uma novela que repete seus capítulos todos os dias.

Lívia olhou para o ponto de ônibus. Se estivesse com o carro do pai passaria por ali meia hora depois. Ainda são sete da manhã. Um ônibus passa, passa outro e outro... Surgem cada vez mais veículos e chega o ônibus que vai à Praça do Porto, o que Lívia e outros pegarão. Começam a se amontoar e entram.

Entrou!

Um “bom dia” de Lívia e, às vezes, um “bom dia” do motorista e do cobrador. Enquanto o ônibus arranca depois de cada freada, os passageiros passam pela catraca. Depois vêm as curvas e as paradas nos pontos. O ônibus lota rapidamente. Dai para frente, não é difícil que as pessoas sintam o enjôo com o chacoalhar constante. Um balanço que Lívia vai passar por quarenta minutos.

A rotina dos ônibus e o comportamento, seja de um ou uma motorista, apenas parece fazer Lívia refletir melhor sobre o que aconteceu com ela ano passado. Ela estava com o carro estacionado na Avenida Getúlio Vargas. Saía de uma loja depois de fazer compras com o pai, a mãe e namorado. Ainda não haviam entrado no carro quando um ônibus, ao dar marcha à ré, raspou a lateral do carro por completo. Lívia não soube se corria atrás do ônibus ou o que fazia diante da falta de atenção e preocupação do motorista que sequer parou para ver o que tinha acontecido.
O resultado do acidente ficou por isso mesmo.

Lívia reclamou, reclamou, reclamou... Nem a empresa ou responsável se posicionou com relação ao conserto do veículo. O tempo passou e o carro foi consertado com o dinheiro de Lívia que não pode mais esperar.

O ônibus parou com mais uma freada, abriu as portas de trás e Lívia desceu em frente à Unic. Pelo menos até o fim da tarde não teria que pensar em barulho, buzinas, fumaça e desrespeito. Nesse tempo, Cuiabá passará, no mínimo, por mais um período de pico – a hora do almoço. Essa que Lívia escapa porque almoça perto do trabalho.

Às seis da tarde, rumo à escola de inglês, tudo parece mais lento, parado e complicado. Neste dia Lívia manobra a moto do seu namorado com mais cautela, o espaço é pequeno e os carros formam longas filas. Se estivesse chovendo – outro problema – aí não andava mesmo: nem de carro, ônibus ou muito menos moto. Devido a essas situações, não é difícil ver em Cuiabá um ou outro acidente por falta de cuidado ou por excesso de ousadia. E Lívia até se considera uma boa motoqueira, mas a falta de experiência com motos faz com que sinta ainda mais medo.

O sinal ainda não abriu. A faixa de pedestres fica vazia e o primeiro carro tenta avançar. Lívia aguarda a luz verde. O que passou teve sorte, fosse outro dia, outra situação não teria sido igual. “É de se ficar no mínimo indignado com a falta de senso das pessoas na direção”. Lívia segue atenta no trânsito, driblando, inclusive, ultrapassagens pela direita. Para ela, esse conjunto de irregularidades nada mais é que imprudência e falta de atenção que faz parte do padrão de comportamento dos motoristas.

O que isso leva a crer, e agora não apenas para Lívia, mas para outros usuários de carro e ônibus de Cuiabá é que há um grande problema quando se fala em educação no trânsito. Nenhuma campanha parece ser capaz de mudar um motorista que tem o hábito de furar o sinal, porque ele faz isso há muito tempo. Ou de fazer com que não corra em altas velocidades. “A campanha contribui, chama a atenção, mas e depois? Quem estará permanentemente chamando a atenção? Serão os pardais, os policiais, as multas que resolverão?”, pergunta ainda sem resposta.

A moto já chegou na Avenida Getúlio Vargas, Lívia passa rápido e na pressa fica para trás o lugar e o momento do antigo acidente com o carro. Depois que terminar a aula de inglês, às nove da noite, as ruas mais livres esquecerão o tumulto de poucas horas. O ônibus do Cophamil que passa pela Isaac Póvoas, a moto ou o carro – cada um em cada momento – levam Lívia de volta para a Barão de Melgaço, no bairro do Porto.

Na manhã seguinte, a cidade acorda com as mesmas pessoas que tomarão seus ônibus, pegarão seus carros e motos, vão para seus respectivos trabalhos. Lívia ou no ônibus, ou na moto ou no carro. Cada dia a experimentar as condutas de risco que a rodeiam. Os ônibus lotados, os carros em fileiras e, no espaço entre eles, as motos. Na curva que chega, no sinal que fecha, a pressa da hora e o motorista que tem que ser ousado para chegar mais rápido. Tudo isso a ponto de estarem todos cegos. Cegos como na treva branca que José Saramago descreve em seu livro Ensaio Sobre a Cegueira.

Lívia vê passar um carro, passar outro e mais outro. Motoristas que passam em um sinal vermelho, e que por falta da boa visão não tiveram a responsabilidade dos olhos. “O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram [...]”.

* Imagens retiradas do Google Imagens.

Um comentário:

  1. Oi Nando adorei ! Essas questões sociais nos levam a pensar em nossas atitudes passadas e futuras ...E fazer com que reflitamos sobre a nossa vida e o contexto social que ela está inserido... achei o máximo!!

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